Dois de julho de 1997.
Neste dia, como sempre, saí de casa pro trabalho de manhã cedo. Fazia frio e vesti uma blusa canelada de gola alta, cor de café com leite. De frente para o espelho, no meu quarto, vi uma pequena fenda no ombro descosturada. “Putz, a blusa abriu aqui!” Minha mãe me observava, parada na porta – “Tira. Eu costuro, rapidinho”. E foi assim que essa blusa amarrou nosso último laço, últimas frases trocadas, carinho eternamente entrelaçado naqueles pontos da minha blusa.
Vesti a blusa, agora cerzida com precisão invisível, e saí.
O dia seguiu normalmente, almocei com colegas em algum restaurante e retornei ao trabalho. No fim do dia, nos reunimos em frente a um telão colocado na empresa para assistirmos ao jogo da decisão do Campeonato Gaúcho, Grêmio X Internacional. Essas confraternizações eram comuns naquela agência de propaganda onde trabalhei por mais de 10 anos.
Fim de jogo, o Inter foi campeão. Dei carona para dois colegas, coloquei o carro na garagem a algumas quadras de casa. Acho que eram 10 da noite. Uma caminhada tensa e alívio quando entro e fecho a porta do prédio.
Subo as escadas ouvindo um burburinho. Termino o lance que levava ao apartamento e vejo que a vizinha estava na nossa porta escancarada, luzes acesas. “O que houve?” – eu disse, preocupada.
– Parece que a Circe passou mal…
Entrei em casa.
No final do corredor, meu pai ajoelhado ao lado dela, o corpo estendido no chão. Depois do impacto da cena, percebi que ele passava álcool nos pulsos dela. Que amor!!
– O que houve? perguntei assustada.
– Não sei minha filha, acho que a “mamãe” passou mal…
Ajoelhei ao lado dela, junto dele, fiz massagem no peito igual a gente vê nos filmes, e respiração boca a boca, mas logo vi o tom roxinho leve da pele… não era mais tempo de nada. O tempo da minha mãe se acabara ali.
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2024.
É impossível percorrer a cidade sem que ela me visite. Ela aparece no ipê amarelo da avenida, nos jacarandás roxos que estão por toda a Porto Alegre, no sortimento de cores dos jardins, na conversa de passarinhos quando amanhece.
Impossível não sentir a presença dela quando me deixo boiar no balanço das ondas do mar, quando tricoto uma peça – em cada ponto, uma laçada de amor – ao cantarolar baixinho fazendo uma tarefa qualquer. Na receita do bolo de maçã e na casa arrumada, as janelas abertas e as cortinas dançando no vento.
Ela está em tudo isso porque ela era tudo isso. E nada disso passava sem que ela comentasse, chamando a nossa atenção. Apreciem! Era como se ela entrasse naquela visão e fosse invadida inteira por aquela presença. Eram inundações recorrentes nela.
Minha mãe tinha uma força de atração natural. Acho que era de tanta alegria e amor dentro dela.
Chorar de tanto rir era fácil. O riso escorregava dela.
Ela era uma mulher bonita, de olhos azuis claros metamórficos (mudavam de tom conforme a roupa). Gostava de estar com gente. Nossos aniversários eram uma festa! Ela preparava tudo com um prazer contagioso – a comida, a casa, as flores nos vasos. E era assim nos Natais e viradas de ano.
Ela era isso: música, cores, raios de sol desenhando a janela no tapete da sala, risos soltos voando no ar, uma árvore coberta de flores, majestosa, fincada nas nossas vidas.
A partida súbita e precoce da minha mãe fez um rasgo de um lado a outro, como arame farpado. Uma ausência imposta para as nossas vidas, sem a menor consideração.
Ela se foi, e demorou um tanto que nem sei pra eu aprender a olhar a vida sem ela, a raiz da minha própria vida.
Eu ainda estou aqui e acho que foi ela, e graças a ela, que eu soube como rearranjar as coisas que me fariam caminhar de novo. E, apesar disso tudo, até ser feliz na maior parte do tempo.
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Circe, minha mãe
Risada solta
Olhos azuis de balinha “Jujubas”
Um lar inteirinho dentro de ti
Circe, minha mãe
Desdobrada em 5 pedaços – Miguel, João Pedro, Susana, Isabel e Beatriz
Que sorte eu ser um deles
Que sorte ter sido cuidada por ti, ensinada por ti.
Mãe, a tua luz iluminava a escuridão, de qualquer tamanho. Ainda hoje, lembrar de ti acende essa luz, e deixa tudo melhor e mais bonito. Eu te amo e a tua falta sempre dói um pouquinho. Mas lembrar de ti como agora, enquanto escrevo aqui abrindo portas e revirando gavetas dentro de mim, eu sinto e sei que a gente tá junta pra sempre, em todo tempo e lugar.
PS: aquela blusa que ela costurou pra mim eu tenho até hoje, jamais vou me desfazer. A cada novo inverno, sempre que eu visto ela, apesar de acender uma tristeza súbita em mim, como um trovão, eu sinto que ela me abraça e daí eu fico feliz de novo.