Lascou, quebrou, sujou… é sinal que existe vida!
Era apegada a coisas, ela sabia. Mas não desde sempre. Deu-se conta ainda menina, quando percebeu que sentia quase dor por certas coisas. O blusão tricotado pela mãe, o relógio presente do pai, a bicicleta de quadro verde herdada do irmão mais velho, o broche de resina transparente com florzinhas secas dentro que foi da avó paterna. Era difícil perder algo, deixar de ter porque, para ela, coisas carregavam significado, tinham a energia dos afetos e da sua própria história.
Coisas contam nossa história.
Coisas contam nossa história. Como o carro da família, um Dodge 52, verde com capota preta. Aquele veículo gigante era uma sala de casa e, ali, ela se divertiu – foi criança feliz. No banco traseiro, igual sofá de 6 lugares, brincava solta e livre com as duas irmãs. Voltadas para o vidro traseiro, de joelhos no enorme sofá ambulante, abanavam para quem vinha atrás – quando eram retribuídas com outro aceno, vibravam e riam! Se escondiam, mas que perigo poderia haver dentro daquela fortaleza? Nenhum, e assim seguiam fazendo graça.
Nesse Dodge, entre os dois bancos dianteiros, onde pai e mãe sentavam, ela cantava alto músicas inventadas de repente, um repertório que não saberia recuperar, mas que arrancava boas risadas da pequena plateia familiar. O tempo andou e o Dodge também: foi substituído por um veículo muito mais jovem, um Corcel 73.
Já adulta, dirigia seu próprio carro e sentia o desespero do primeiro risco na lataria. Era o fim do mundo! Calçados, bolsas, roupas, eram pequenos tesouros conquistados com o próprio trabalho. Ser pega pela chuva com sapatos novos era desolador, assim como todo tipo de acidentes que o cotidiano aplica e que vão arruinando com a aparência imaculada do que foi novo um dia.
Coisas sofrem com o uso e usar é viver
Com o tempo, ela aprendeu que as coisas sofriam com o uso e que usar é viver. “É sinal de que há vida”, dizia para o marido. O prato lascou, a travessa quebrou. Heranças da mãe, cuidadas com a atenção de um perdigueiro, colocadas na rotina do dia a dia, expostas ao risco que o uso mais simples pode trazer. Assim foi, que ela tirou as lembranças de dentro dos armários e gavetas, tirou as lembranças de dentro de si. Louças, toalhas bordadas, panos, coisas de pai e mãe, renasceram e vieram para fora, para a vida.
Estava curada da dor do apego? Será que ela já não se importava mais com o que quer que acontecesse com a jarra que foi da avó, o banquinho de madeira feito pelo pai, o pano de prato com ponto cruz bordado pela mãe jovem? Não, não era cura. Era ajuste. O apego era amor contido nas coisas, era amor entranhado, lembranças que as coisas carregam, era apego às coisas que contavam a própria história, a história dela. Era bonito.
Coisas não são para sempre
Na maturidade erguida com observação, experiências, leituras e conversas, ela aprendeu que coisas não são para sempre, elas se perdem, se estragam, desgastam. Elas têm vida igual gente. Se ficam guardadas, são esquecidas porque não são vistas e o que não vemos não existe. Se são usadas, são úteis ou enfeitam, e brilham com a energia da história delas, nos levam no caminho de volta ao passado bom.
Desde então, depois desse tempo que não tem como saber a data exatamente, ela passou a usar tudo, agora, hoje mesmo, sempre. Da roupa novinha que antes ficava no armário esperando o momento certo para usar até as coisas herdadas de pai e mãe e avó e tia. Foi quase uma dança de tudo isso ao redor, num ar que era de liberdade e de agora. Uma pressa.
O apego já não tinha peso e dor, não tinha medo junto, o medo de perder. Porque o apego com as coisas era conexão com o passado, o passado vivo novamente, ali, sobre o balcão da sala de estar ou no broche preso na lapela. Se antes ela sofria, agora sentia paz, e sabia que cada coisa tem seu tempo, uma missão talvez. Agora sabia deixar ir e vir e se entregar ao tempo que cada coisa tem.
“O apego deve ser laço, não corrente!”
Então, ela entendeu que aquilo que sentia antes era um apego que acorrentava ela e as coisas. E viu que isso não era bom, porque correntes que prendem só se for um navio que atraca no cais. Queria ser leve, deixar ir. E nessa busca ela entendeu que o apego bom é o apego livre, apego que é laço de delicadeza. É verdade, nem sempre ela estava pronta para desfazer o laço do apego, assim de bate-pronto, “pá pum”. Às vezes, precisava deixar o tempo avançar mais um pouco, precisava do tempo. “Ainda não estou pronta…”, mas sabia que a hora certa chegaria e, então, aceitaria o desenlace de liberdade – para ela e para a coisa.